INTRODUÇÃO
A sociedade brasileira encontra-se, talvez como nunca antes, aterrorizada pelo crescimento de ações criminosas e pelo aparente descontrole do Estado em relação à sua contenção. Em razão da onda de atentados ocorridos em várias cidades do país, em especial nas cidades do Estado de São Paulo, a opinião pública tem cobrado das autoridades uma resposta mais efetiva no combate à criminalidade. Muitas vezes, coloca-se em xeque a eficácia do Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito Penitenciário, dentre outros ramos das ciências jurídicas que cuidam do fenômeno crime.
No que concerne ao Direito Penal, foco de nosso estudo, critica-se constantemente a sua “falta de rigidez”, tanto no que diz respeito à criminalização de condutas, como no que tange à cominação e aplicação de penas. Temas como prisão perpétua, redução da maioridade penal, abolição da progressão de regimes, dentre outros, já são comuns nas conversas populares e, não raramente, são utilizados como plataforma política ou como discurso demagógico. A cada dia, mais se acredita que incumbe ao Direito Penal resolver todos os problemas da criminalidade, independente de seu afastamento com os ditames do Estado Democrático de Direito.
Diante deste quadro, torna-se cada vez mais importante ressaltar que a aplicação do Direito Penal não pode ser apartada dos princípios e garantias que regem o Estado Democrático de Direito, como é o nosso, sob pena de ultrapassar os limites de sua intervenção, limites estes estabelecidos em prol de cada cidadão. Com efeito, ainda que se fale muito hoje em dia em uma maximização do Direito Penal, certo é que, se nos atentarmos para a evolução das ciências penais nos últimos anos, veremos que as tendências mais coerentes vão justamente no sentido contrário, isto é, de sua minimização.
Neste sentido, a presente pesquisa tem por objetivo delinear os limites que a intervenção do Estado via Direito Penal deve obedecer, apresentando os princípios que devem ser observados na sua aplicação, e dando especial destaque às modernas discussões que giram em da chamada intervenção mínima, que resume, como se verá, os valores do Estado Democrático de Direito.
Para tanto, o trabalho foi estruturado da seguinte forma: no primeiro capítulo, cuidaremos dos limites do direito de punir do Estado, ou jus puniendi, analisando seus antecedentes históricos e sua atual conformação; em um segundo momento, veremos como a aplicação do Direito Penal deve ser pautada pelos princípios constitucionais, bem como deve levar em conta sua verdadeira função, qual seja, a tutela de bens jurídicos; finalmente, cuidaremos da chamada intervenção mínima, seus pressupostos e seus reflexos no Direito Penal e demais ciências penais.
Busca-se, com este estudo, demonstrar como a intervenção mínima não apenas é a tendência mais coerente com os princípios e garantias do Estado de Direito Contemporâneo, como também pode, contrariamente ao que pensa o senso comum, dotar o Direito Penal da eficácia necessária para o combate à criminalidade.
1 FUNDAMENTOS E LIMITES DO PODER PUNITIVO DO ESTADO
1.1 Antecedentes históricos do Direito Penal moderno
Para que se compreenda qual o papel que o Direito Penal deve desempenhar no âmbito de um Estado Democrático de Direito como o nosso, faz-se necessário, de antemão, que se tenha claro a evolução por que tal ramo de Direito passou até atingir sua atual conformação.
A história do Direito Penal se confunde, num primeiro momento, com a história do Direito como um todo. O Direito nasce com a vida do homem em sociedade, como ficou consagrado na expressão “ubi societas ibi jus et ibi jus ubi societas”; decorre da necessidade de solucionar conflitos de interesses e displinar a vida social. Segundo Luis Regis Prado (2001, p. 27) o Direito, como ordem jurídica, constitui importante fator de estabilidade e de harmonia nas relações sociais, pois soluciona os conflitos individuais e sociais, atribuindo, assim, uma ratio à realidade humana.
Os homens, que a princípio viviam isolados e de forma independente, se uniram com a finalidade de melhor implementar suas necessidades básicas e suplantar os seus inimigos. Todavia, nem sempre tal união proporcionava estabilidade e segurança aos indivíduos, sendo que, para conservá-la, foi necessário que se criassem normas de conduta, estabelecendo sanções àqueles que as infringiam.
Com a evolução das sociedades, essas normas passaram a ser escritas, ficando para trás o estado primitivo das civilizações, caracterizado pela força física. O Direito Penal, como não podia ser diferente, acompanha tal evolução, da qual apresentaremos, em rápidas linhas, seus principais contornos (ressalte-se que, da mesma forma que qualquer outro fenômeno histórico, as características de cada um dos períodos a seguir analisados não se extinguem imediatamente com o advento de uma nova fase, apenas passam a ter cada vez menor ênfase, até, por fim, se extinguirem).
1.1.1 Os períodos da vingança penal
São consideradas pelos historiadores várias as fases da pena, quais sejam: a vingança privada, a vingança divina, a vingança pública e, posteriormente, o período humanitário, que viria com o Iluminismo e consistiria na gênese do Direito Penal moderno.
1.1.1.1 Tempos Primitivos: a vingança divina
Não havia nos tempos primitivos um sistema de Direito Penal propriamente dito. Nessa época, os grupos sociais estavam envoltos em um ambiente mágico e religioso, onde todos os fenômenos naturais maléficos eram tidos como castigos aplicados pela divindade em resposta à prática de certos atos que exigiam reparação.
Assim, para abrandar a ira divina, foram criadas várias proibições, denominadas “tabu”, que em caso de desobediência acarretavam castigo. É o que modernamente se define respectivamente por crime e pena, sem contudo, os parâmetros racionais que atualmente se estabelecem para ambos. Tal castigo consistia no sacrifício da própria vida do transgressor ou no oferecimento de bens valiosos aos deuses.
A punição, por delegação divina, era aplicada pelos sacerdotes. Esses castigos eram extremamente severos, cruéis e desumanos, pois se acreditava que sua intensidade deveria estar relacionada com a grandeza do deus ofendido, servindo, outrossim, como forma de intimidação dos indivíduos daquela sociedade. Este é, em verdade, um “pré-direito penal”, de ordem religiosa, teocrática e sacerdotal.
1.1.1.2 Vingança privada
O chamado período da vingança privada caracteriza-se por ser a pena uma retribuição individual, ou coletiva, como reação ao crime, sem que houvesse uma necessária proporção entre a ofensa e o revide aplicado ao ofensor. Tal desproporção permitia, inclusive, a extensão da pena a pessoas do familiares do transgressor, ou de todo o grupo social a que pertencia, culminando com verdadeiras guerras entre grupos e famílias, que iam se enfraquecendo e se extinguindo.
Com o desenvolvimento social, e buscando evitar a dizimação das tribos, surge o chamado talião, como primeira conquista no terreno repressivo (NORONHA, 2001, p. 21). É a primeira tentativa de ordenar e sistematizar a aplicação de penas, com o estabelecimento de critérios de proporcionalidade. O talião foi adotado em leis antigas, como no Código de Hamurabi, no Êxodo e na Lei das XII Tábuas.
Outro avanço importante nas idéias penais foi o surgimento da denominada composição, que era o sistema pelo qual o ofensor comprava a sua liberdade, esquivando-se do castigo, através do pagamento de determinada quantia em moeda, armas, gado, entre outros. Adotada pelo Código de Hamurabi, pelo Pentateuco e pelo Código de Manu, a composição foi amplamente acolhida pelo Direito Germânico, podendo afirmar que ela consiste na origem remota das formas modernas de indenização do Direito Civil e da multa do Direito Penal.
1.1.1.3 Vingança pública
Com o desenvolvimento da organização social, a vingança privada passa a ceder espaço ao período da vingança pública. Neste estágio, o Direito Penal assumiria a finalidade precípua de garantir a segurança do príncipe ou soberano através da aplicação de penas, em sua maioria severas e cruéis, pois não havia qualquer tipo de controle a sua cominação e aplicação. Esta proteção ao soberano era justificada pelo Estado pela chamada “obediência religiosa”, visto que os seus governantes eram verdadeiros intérpretes e mandatários dos deuses.
1.1.2 Características gerais do Direito Penal na Antiguidade e Idade Média
1.1.2.1 Direito Penal dos Hebreus
O Direito Penal do povo hebreu evoluiu, depois de suavizada a Legislação Mosaica, lei extremamente rigorosa, com o advento do Talmud. Por meio dele, a pena de talião foi substituída por multa, prisão e imposição de castigos físicos, o que resultou na extinção da pena de morte, suprida pela aplicação da prisão perpétua sem trabalhos forçados. Nesta fase, os crimes foram divididos em delitos contra a divindade e contra o semelhante. Interessante salientar que também se faziam presentes algumas garantias em favor do réu, ainda que incipientes, tais como a proteção contra a denunciação caluniosa e o falso testemunho.
1.1.2.2 Direito Penal Romano
O Direito Penal Romano contribuiu decisivamente para a evolução do Direito Penal com a asserção do caráter público e social deste, pois nesta fase Direito e Religião separam-se e os delitos passam a ser divididos em crimina publica e delicta privata, sucedendo a eles a criação dos crimina extraordinaria (entre as outras duas categorias). Relevante destacar, também, dentre as principais características, o desenvolvimento alcançado pela doutrina da imputabilidade, da culpabilidade e de seus excludentes; o elemento subjetivo é claramente diferenciado; o desenvolvimento, ainda que incompleto, da teoria da tentativa; o reconhecimento, de caráter excepcional, das causas de justificação; a consideração do concurso de agentes; por fim, a pena passa a ser entendida como uma reação pública, cabível ao Estado a sua aplicação.
1.1.2.3 Direito Penal Germânico
O Direito Penal Germânico primitivo, basicamente consuetudinário, possuía características acentuadas de vingança privada, estando o indivíduo sujeito à reação desmedida e à composição. Posteriormente, influenciado pelo Direito Romano e pelo cristianismo, foi aplicado o talião. Outro ponto fundamental foi a ausência do elemento subjetivo, importando apenas o resultado causado (objetividade), não havendo punição, portanto, em caso de tentativa.
1.1.2.4 Direito Penal Canônico
Direito canônico é o ordenamento jurídico da Igreja Católica Apostólica Romana, composto pelo Corpus Júris Canonici. Este, por sua vez, resulta do Decretum Gratiani (1140), seguido pelos decretos dos pontífices romanos (séc. XII), de Gregório IX (1234), de Bonifácio VIII (1298) e pelas Clementinas, de Clemente V (1313). Os livros penitenciais (instruções dadas aos confessores para administrar o sacramento da penitência) também eram fontes canônicas. No ano de 1983, foi promulgado o novo Código de Direito Canônico, pelo Papa João Paulo II.
Nos primórdios, o Direito Penal canônico possuía caráter disciplinar de aplicação restrita aos religiosos e, posteriormente, com o enfraquecimento do poder estatal, passou a abranger também os leigos. Órgãos distintos eram destinados a julgá-los, conforme nos ensina Luiz Regis Prado:
nesse contexto evolutivo, a jurisdição eclesiástica aparecia dividida em ratione personae e ratione materiae. Pela primeira – em razão da pessoa -, o religioso era julgado sempre por um tribunal da Igreja, qualquer que fosse o delito cometido. Na segunda – em razão da matéria -, firmava-se a competência eclesiástica, ainda que o crime fosse praticado por um leigo (PRADO, 2001, p.42).
Dentre as inúmeras características do Direito Penal canônico, cumpre-nos ressaltar: a humanização do Direito Penal, a proclamação da igualdade de todos os homens perante Deus, a acentuação do aspecto subjetivo do crime e da responsabilidade penal, a internação em prisão celular e monastérios e, por fim, a mitigação das penas, que passam a ter como finalidade não só o restabelecimento da ordem social e a exemplaridade da punição, mas também a correção e o arrependimento do delinqüente. Nem por isso, no entanto, deixou de ser um Direito Penal extremamente severo e, na maioria das vezes, cruel.
1.2 Iluminismo, Estado de Direito e Direito Penal
No decorrer do denominado Século das Luzes (séc. XVIII), emergiu o chamado Período Humanitário do Direito Penal, que se caracteriza como uma reação reformadora decorrente do Iluminismo, concepção filosófica que tinha por escopo ampliar o domínio da razão a todas as áreas da experiência humana.
O Período Humanitário do Direito Penal foi um movimento que lutava pela reforma das leis e da administração da justiça penal, pois nesta fase o homem moderno tomava consciência que a problemática penal possuía caráter filosófico e jurídico. Os principais assuntos abordados são os do fundamento do direito de punir e da legitimidade das penas.
Cumpre-nos destacar a atuação determinante dos vários pensadores, como Voltaire, Montesquieu, Rousseau e Diderot, que defendiam a liberdade, igualdade e justiça, contestando o absolutismo vigente à época.
Imbuído dos princípios iluministas, surge, na Itália, o filósofo Cesare Beccaria, que publicou, em 1764, a obra “Dos Delitos e das Penas”. As idéias contidas neste livro foram o marco inicial do Direito Penal moderno, conforme nos ensina Luis Regis Prado:
sem dúvida, foi ele o autor que em primeiro lugar desenvolveu a idéia da estrita legalidade dos crimes e das penas, operando uma verdadeira sistematização, dominada por três postulados fundamentais: legalidade penal, estrita necessidade das incriminações e uma penologia utilitária. Assim, resumidamente: a) a afirmação do princípio fundamental da legalidade dos delitos e das penas: só as leis podem fixar as penas em relação aos delitos e essa autoridade não pode residir senão no legislativo; b) a afirmação de que a finalidade da pena é a prevenção geral e a utilidade: a pena deve ser necessária, aplicada com presteza, determinada, suave e proporcional ao delito; c) a abolição da tortura e da pena de morte; d) a infalibilidade na execução das penas; e) a clareza das leis; f) a separação das funções estatais; e g) a igualdade de todos perante a lei penal (PRADO, 2001, p. 47).
Como se vê, o nascimento do Direito Penal como hoje o conhecemos coincide com o surgimento do Estado Moderno, passando a refletir, então, as necessidades do Estado Liberal de Direito que se instaurava.
Em linhas gerais, o chamado Estado Liberal de Direito, ou simplesmente Estado de Direito, foi consagrado pelas Constituições americana e francesa do século XVIII, e, por se tratar de uma resposta aos abusos do Absolutismo, caracterizava-se pela exigência de separação dos poderes e pela vinculação da lei não apenas aos cidadãos, mas, principalmente, ao próprio poder público. Diante deste quadro, como ressalta Carlos Ari Sundfeld, surge a necessidade de “uma norma superior à lei (e, em conseqüência, superior ao Estado que a produz) definindo a estrutura do Estado e garantindo direitos aos indivíduos” (SUNDFELD, 2001, p. 38), impondo-se que o Estado seja criado e regulado por uma Constituição. A grande finalidade do Estado de Direito, porém, é “tornar efetiva, permanente e indestrutível a garantia de direitos individuais” (SUNDFELD, 2001, p. 48), ou seja, proteger o cidadão contra o poder do Estado, através da garantia de direitos individuais e da consagração de direitos subjetivos públicos, oponíveis ao próprio Estado.
Costuma-se atribuir o rótulo de liberal ao Estado de Direito pelo fato de ter sido dada muita ênfase à liberdade dos próprios indivíduos em detrimento da intervenção estatal, fruto das exigências trazidas pelo desenvolvimento das relações mercantis. Daí a predominância da preocupação com direitos de índole individuais, em especial no que diz respeito à propriedade privada. Neste sentido, afirma Luiz Luisi que o Estado de Direito tem como tônica “a afirmação dos direitos do homem e do cidadão e a limitação do papel do Estado a garantir a efetivação e eficácia dos mencionados direitos, principalmente no que concerne à inviolabilidade da liberdade individual e da propriedade” (LUISI, 2003, p. 11).
O Direito Penal, no âmbito do Estado de Direito Liberal, passa ter como finalidade precípua a tutela de direitos individuais, como a vida, integridade física e propriedade. É neste momento que se começam a desenvolver conceitos como bem jurídico, tipo penal, culpabilidade etc., cuja sistematização é chamada de Direito Penal clássico. Apesar de ser uma concepção de Direito Penal muito mais racional e humana que a utilizada em períodos históricos anteriores, esta primeira conformação do sistema jurídico-penal ainda teria muito a evoluir, de modo a acompanhar a própria evolução que o Estado sofreu no decorrer do Século XX.
1.3 Direito Penal no Estado Democrático de Direito Contemporâneo
O art. 1º, caput, da Constituição Federal brasileira de 1988 contém a seguinte disposição:
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) [grifo nosso]
Para que se compreenda o alcance da expressão destacada no dispositivo acima, importante que se tenha clara a evolução por que passou o Estado no último século.
O Estado de Direito, em sua configuração inicial, ou seja, puramente liberal, não logrou conter o crescimento das desigualdades sociais; com as crises econômicas do início do Século XX, a idéia de um Estado não-intervencionista, passivo, cede lugar a idéia de um Estado ativo no combate aos problemas sociais, intervencionista na ordem econômica, promotor de um bem estar social. É o surgimento do chamado Estado Social.
Luis Luisi afirma que o Estado Social representa “as ideologias que preconizam a presença do Estado para, superando as distorções desigualitárias geradas pelo Estado liberal, garantir a todos o indispensável ao atendimento das necessidades materiais básicas” (LUISI, 2001, p. 11-2). Com efeito, a bandeira da liberdade, levantada pelo Estado de Direito, passa a ceder espaço à bandeira da igualdade, através do “abandono do formalismo e individualismo característicos do Estado de Direito, em nome de um Estado Social de Direito material, que tem como tarefa a afirmação dos direitos sociais e a realização de objetivos de justiça social” (MARTINEZ, 2004, p. 87).
Consequentemente, ao lado de direitos puramente individuais, como a propriedade, acrescentou-se ao Estado a tarefa de garantir também os direitos sociais, como trabalho, saúde, assistência social etc.
O Estado Social, ou Welfare State (Estado de bem-estar social), inflou consideradamente as atribuições do Estado, e não sobreviveu às crises das décadas de 70 e 80. No entanto, evidenciou a necessidade de um Estado ativo, que, além de garantir os direitos individuais, promova também os direitos sociais, ajudando a delinear as principais preocupações dos Estados Constitucionais modernos, aos quais podemos chamar Estados Democráticos de Direito Contemporâneos.
Assim, no Estado Democrático de Direito encontram-se presentes tanto as características do Estado de Direito como do Estado Social, pois este, como afirma Carlos Ari Sundfeld “não só incorpora o Estado de Direito, como depende dele para atingir seus objetivos” (SUNDFELD, 2001, P. 55-6); neste sentido, o Estado Democrático de Direito pode ser considerado um verdadeiro Estado de Direito material, preocupado a um só tempo com o respeito à legalidade e aos direitos individuais e com a promoção de justiça social. Em resumo,
o Estado Democrático de Direito, enquanto Estado Constitucional, encerra em si tanto as finalidades de garantia do Estado de Direito (garantia contra a ingerência do Estado na esfera individual), como as de proteção do Estado Social (proteção por meio de atuação positiva do Estado), de tal forma que a necessidade de intervenção característica deste último modelo encontra seus limites nas garantias estabelecidas pelo primeiro modelo (MARTINEZ, 2004, p. 88).
Como vimos, por expressa disposição constitucional, o Brasil é um Estado Democrático de Direito; esta declaração formal, per si, não permite concluir que nosso país reúna todas as características que tal modelo de Estado deve conter. No entanto, ao analisarmos os conjuntos de normas e princípios consagrados no corpo da Constituição, encontramos dispositivos preocupados tanto com as exigências do Estado de Direito, como com as do Estado Social. Assim, temos, por exemplo, consagrados os princípios da liberdade (art. 3°, I), legalidade (art. 5°, II), proteção da integridade física (art. 5°, III), dentre outros, que são característicos do Estado de Direito; da mesma forma, temos também preocupações de índole social, como a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3°, III), proteção aos direitos sociais (art. 6°), especialmente dos trabalhadores (art. 7°) etc.
Por tudo isso, o Brasil é um Estado Democrático de Direito não apenas pela disposição formal contida na Constituição Federal, mas por consagrar os valores que tal Estado está destinado a perseguir. Como afirma José Afonso da Silva,
a configuração do Estado Democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. (...) É um tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor de justiça social (SILVA, 2001, p. 123-4).
Diante de todas estas transformações sofridas pelo Estado no decorrer do século passado, teve também o Direito Penal que se adaptar ao novo contexto que emergira. Com efeito, o Direito Penal, tal como concebido pelo sistema clássico, como protetor de bens jurídicos individuais, evoluiu, passando a tutelar também bens jurídicos de natureza coletiva e social, como as relações de consumo, organização do trabalho etc.
A mudança que se operou no Direito Penal, porém, não se resume aos bens jurídicos tutelados. Ao observamos as modernas tendências das ciências penais, vemos que há uma preocupação crescente na fundamentação constitucional do Direito Penal, com a penetração de valores no sistema jurídico-penal que antes não podia ali adentrar por seu extremo formalismo. O estudo dos princípios constitucionais em matéria penal ganha relevo, por passarem a ser considerados os verdadeiros legitimadores da atuação penal. Como afirma Márcia Dometila de Carvalho:
a não fundamentação de uma norma penal em qualquer interesse constitucional, implícito ou explícito, ou o choque mesmo dela com o espírito que perambula pela Lei Maior, deveria implicar, necessariamente, na descriminalização ou não aplicação da norma penal. (CARVALHO, 1992, p. 23)
Desta forma, o Direito Penal, no âmbito de um Estado Democrático de Direito como o nosso, deve necessariamente atender os limites estabelecidos pela própria Constituição Federal, sob pena de perder sua própria legitimidade. Tais limites estão materializados nos princípios constitucionais, quer sejam eles de natureza especificamente penal ou não. Por esta razão, no próximo capítulo analisaremos alguns princípios constitucionais, que fornecerão o parâmetro para a devida aplicação do Direito Penal no país.
2 OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL
Muitas são as formas que a doutrina procura conceituar o termo princípio, sendo que a maioria delas acabam por transmitir a idéia de alicerce, base, de todo o ordenamento jurídico. Com efeito, os princípios tendem a exercer tal papel fundamental por serem condensações de todos os valores consagrados pela ordem constitucional. Neste sentido, ensina José Afonso da Silva que “os princípios são ordenações que se irradiam e imantam os sistemas de normas, são ‘núcleos de condensações’ nos quais confluem valores e bens constitucionais” (SILVA, 2001, p. 96).
Por sua vez, J. J. Gomes Canotilho considera os princípios jurídicos fundamentais como “historicamente objectivados e progressivamente introduzidos na consciência jurídica e que encontram uma recepção expressa ou implícita no texto constitucional” (CANOTILHO, 1993, p. 171, apud ROBERTI, 2001, p. 53)
Ao Direito Penal, importam os princípios constitucionais porque eles exercem uma função delimitadora sobre aquele. Ao regularem e vincularem o exercício absoluto do poder punitivo, os princípios impedem o uso indiscriminado da punição, limitando, desta maneira, a intervenção penal. Daí a necessidade de se ter bem claro quais os princípios consagrados em nossa Constituição Federal, pois são eles que, em último grau, conferem legitimidade ao Direito Penal.
2.1 Princípio da legalidade
Um dos princípios fundamentais consagrados em nossa Constituição Federal é o princípio da legalidade, expressamente previsto em dois dispositivos;
Art. 5° (...):
(...)
II - Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
(...)
XXXIX – Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
Luiz Luisi, ao estudar tal princípio, desdobra três diferentes postulados: a) reserva legal, referente às fontes penais incriminadoras; b) determinação taxativa, quanto à enunciação das normas; c) irretroatividade, com relação à validade das disposições penais no tempo (LUISI, 2003, p. 17).
2.1.1 Reserva legal
Trata-se do aspecto do princípio da legalidade mais conhecido, e quiçá o mais importante, e está consagrado em nosso texto constitucional, conforme dispositivo acima citado (art. 5°, XXXIX, CF/88). Refere-se à famosa expressão de Feuerbach: nullum crime, nulla poena, sine previa lege. Apesar de ter reminiscências históricas mais antigas, o princípio da reserva legal encontra suas raízes no Iluminismo, com a necessidade de se deter os abusos do absolutismo e conferir maiores garantias aos cidadãos.
Com o fim do absolutismo e o conseqüente surgimento dos regimes democráticos este princípio passou a integrar as novas Constituições. A partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1786, o princípio inicia sua universalização.
O postulado da reserva legal restringe o poder punitivo do Estado nos limites da lei, entendida em seu aspecto formal (espécie normativa consagrada no sistema jurídico e regularmente elaborada pelo poder legislativo), conferindo ao Direito Penal uma função de garantia, por assegurar a liberdade do cidadão contra a arbitrariedade do Estado e do Juiz.
Do princípio da reserva legal, outrossim, decorre a proibição do direito costumeiro e da analogia como fonte do Direito Penal, quando o assunto a ser abordado são as normas incriminadoras, salvo se para beneficiar o réu, caso em que não haveria contestação ao referido axioma.
Em resumo,
o postulado da reserva legal, além de arginar o poder punitivo do Estado nos limites da lei, dá ao Direito Penal uma função de garantia, posto que tornando certos o delito e a pena, asseguram ao cidadão que só por aqueles fatos previamente definidos como delituosos, e naquelas penas previamente fixadas pode ser processado e condenado. (...) O princípio da reserva legal é um axioma destinado a assegurar “a liberdade do cidadão contra a onipotência e a arbitrariedade do Estado e do Juiz” (LUISI, 2003, p. 23).
2.1.2 Determinação taxativa
Este aspecto do princípio da legalidade diz respeito à técnica de elaboração da lei penal, e, por isso, é especificamente direcionado ao legislador: este, ao formular a lei penal, deverá torná-la o mais clara e precisa possível, fixando a extensão do ilícito com a certeza necessária. Fala-se então que “as leis editadas pelo legislativo sejam claras (compreensão imediata), certas (inexistência de termos vagos) e precisas (âmbito de regramento bem delimitado” (MARTINEZ, 2004, p. 103).
Como se vê, o princípio da taxatividade possui função garantista, pois ao vincular o julgador a uma lei taxativa, protege o cidadão da discricionariedade judiciária.
Costuma-se fundamentar o princípio da determinação taxativa na própria estrutura da norma penal: se esta visa ordenar e proibir determinado comportamento, a obediência a tal comando deve ter como pressuposto que o destinatário tenha possibilidade de compreender seu conteúdo. Argumento parecido é utilizado para aqueles que embasam o princípio na função intimidadora das normas penais, pois, para ocorrer intimidação, mister tenha o destinatário uma noção clara e inequívoca.
2.1.3 Irretroatividade da lei penal
Com relação ao aspecto da vigência temporal da lei penal, o princípio da legalidade desdobra-se também no princípio da irretroatividade da lei penal, o qual se encontra consagrado na Constituição Federal:
Art. 5 ° (...):
XL – A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.
Este postulado constitui um complemento lógico da reserva legal, exigindo que a lei seja atual, só alcançando fatos cometidos após o início de sua vigência, e não sobre anteriores. Ademais, referido princípio “dá ao cidadão a segurança, ante as mudanças legislativas, de não ser punido, ou de não o ser mais severamente, por fatos que no momento de sua comissão ou omissão, não eram apenados, ou o eram de forma mais branda” (LUISI, 2003, p. 26).
Exceções ao princípio da irretroatividade encontramos nas leis excepcionais e temporárias que, segundo o art. 3° do CP, possuem retroatividade e ultra-atividade, respectivamente. Tal disposição, se aparentemente fere o texto constitucional que determina a irretroatividade da lei penal, encontra seu fundamento na segurança jurídica, pois são tais exceções são necessárias para que se crie uma certeza de que haverá o cumprimento da lei em um momento extraordinário ou temporário, caso contrário a norma penal seria desprovida de qualquer eficácia.
2.2 Princípio da exclusiva proteção de bem jurídico
Em um Estado Democrático de Direito, a principal finalidade a que o Direito Penal deve almejar é a tutela de bens jurídicos fundamentais. Isto é pacífico em quase toda a doutrina, com a exceção de algumas correntes funcionalistas, como o funcionalismo sistêmico de Jakobs.
Não é fácil a tarefa de se definir o que seja bem jurídico. Segundo Gianpaolo Poggio Smanio, “o conceito de bem jurídico não é estático, mas sim dinâmico, aberto às mudanças sociais e ao avanço científico. Daí ser o seu conceito mutável de acordo com a evolução do homem, da sociedade e do Estado” (SMANIO, 2002, p. 130).
Por sua vez, Jorge de Figueiredo Dias, após também ressaltar a dificuldade na procura por uma definição de bem jurídico, ensina que há sempre um “núcleo essencial” em tal conceito, reconhecendo no bem jurídico “a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso” (DIAS, 1999, p. 63).
Em outras palavras, podemos dizer que de acordo com a relevância social de determinada conduta, o ordenamento jurídico lhe confere o status de bem jurídico, e, consequentemente, fornece-lhe tutela normativa. Ao Direito Penal, no entanto, interessa tão somente aqueles bens que, por serem indispensáveis ao desenvolvimento da dignidade da pessoa humana e ao desenvolvimento social como um todo. Assim,
o pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal reside na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade -, dentro do quadro axiológico constitucional ou decorrente da concepção de Estado de Direito democrático (PRADO, 2000, p. 82).
Dizer, então, que ao Direito Penal compete a tutela de bens jurídicos fundamentais significa afirmar que este ramo do Direito somente deve ser utilizado pelo Estado para reprimir condutas que tenham potencial condição de ferir um bem jurídico tão importante que, se violado, compromete tanto a dignidade do indivíduo como a ordem social.
Importante destacar, por fim, que este princípio influi tanto na delimitação do injusto penal, como na própria análise da função da pena. Neste sentido, ensina Luiz Regis Prado que
a relação entre o bem jurídico e pena opera uma simbiose entre o valor de bem jurídico e a função da pena: de um lado, tendo-se presente que se deve tutelar o que em si mesmo possui um valor, o marco da pena não é senão uma conseqüência imposta pela condição valiosa do bem, de outro lado, e ao mesmo tempo, a significação social do bem se vê confirmada precisamente porque para a sua proteção vem estabelecida a pena. Tudo isso contribui para concretizar os requisitos de capacidade e necessidade de proteção, que é comum se exigir dos bens jurídicos por ocasião de prever sua tutela (PRADO, 1996, p. 23).
2.3 Princípio da lesividade e princípio da insignificância
A intervenção penal não se legitima, porém, apenas com a existência de uma ameaça ou lesão a um bem jurídico fundamental; faz-se necessário, ainda, que haja uma lesão significativa em referido bem. É o chamado princípio da lesividade, ou da ofensividade.
Em decorrência de tal princípio, ganhou destaque na doutrina o chamado princípio da insignificância, segundo o qual a intervenção penal só se justifica quando for uma lesão relevante. Exclui-se, assim, da esfera penal, os crimes de bagatela, como furto de pequeno valor, por exemplo.
Há que se ter claro, aqui, que tal princípio não deve ser encarado em termos absolutos. Por funcionar como um parâmetro interpretativo, é fundamental que leve em conta as particularidades do caso concreto, para que se defina o que pode ou não ser considerada uma lesão ao bem jurídico.
2.4 Princípio da fragmentariedade
Este princípio ressalta o caráter fragmentário do Direito Penal, sendo corolário do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos fundamentais. Assim, “se o Direito Penal deve se preocupar apenas com a proteção de bens jurídicos essenciais, a contrario sensu, temos que nem toda ofensa a bens jurídicos deverá necessariamente ser tutelada pelo Direito Penal” (MARTINEZ, 2004, p. 98).
A respeito deste princípio, vale transcrever a lição de Luiz Regis Prado e Cezar Roberto Bitencourt:
nem todas as ações que lesionam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, como nem todos os bens jurídicos são por ele protegidos. O Direito Penal limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, decorrendo daí o seu caráter fragmentário, posto que se ocupa somente de uma parte dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica (BITENCOURT; PRADO, 1996, p. 83).
2.5 Princípio da subsidiariedade e da ultima ratio
De acordo com o princípio da subsidiariedade, o Direito Penal deve ser subsidiário a todos os outros meios que o Estado tem disponível para atuar no caso concreto; pelo princípio da ultima ratio, a intervenção penal só se justifica se forem esgotados referidos meios. Os dois princípios são, como se vê, dois lados de uma mesma moeda, e apenas evidenciam que o Direito Penal só está legitimado para tutelar bens jurídicos lesionados ou expostos a perigo quando todas as outras formas de proteção possíveis já foram esgotadas.
Assim, a intervenção penal será precedida da busca por soluções no âmbito civil ou administrativo, ainda que exista uma norma penal a respeito da questão, pois se o resguardo ao bem jurídico puder ser satisfatoriamente efetivado por um caminho menos gravoso, não se faz necessário a intervenção estatal via Direito Penal.
Tais princípios são tão importantes que não poucas vezes a própria função do Direito Penal é identificada com eles, quando se fala em tutela subsidiária de bens jurídicos fundamentais.
2.6 Princípio da proporcionalidade
Segundo o princípio da proporcionalidade, há que haver uma proporção entre a gravidade do crime praticado e a penalidade imposta ao agente, bem como deve haver proporção entre a finalidade do Direito Penal e a respectiva resposta estatal. Em seu primeiro aspecto, o princípio da proporcionalidade assume uma feição retribucionista, impondo uma justa proporção entre o injusto cometido e a sanção penal que será imposta; no segundo aspecto, verifica-se um caráter prevencionista e, neste sentido, é corolário dos princípios da subsidiariedade e da ultima ratio (MARTINEZ, 2004, p. 99).
2.7 Princípio da culpabilidade
O princípio da culpabilidade é um dos mais importantes princípios constitucionais, sendo verdadeira consagração da dignidade da pessoa humana. Segundo ele, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (art. 5°, LVII, CF/88).
Como afirma Luiz Luisi,
dando relevância constitucional ao princípio da culpabilidade, o nosso ordenamento jurídico, que tem como um de seus fundamentos à dignidade da pessoa humana, põe como centro do nosso Direito Penal o homem, visto como um ser livre, ou seja, capaz de autodeterminar-se (LUISI, 2003, p. 38).
O princípio da culpabilidade pode ser encarado sob três aspectos: é fundamento da pena, limite da pena e conceito contrário à responsabilidade objetiva (BITENCOURT; PRADO, 1996, p. 84). Enquanto fundamento da pena, reconhece a capacidade de autodeterminação do homem, ao exigir que ele tenha compreensão do ilícito, da ilicitude de seu comportamento e que haja a exigibilidade de conduta diversa; enquanto limite de pena, a culpabilidade justifica a sanção pela finalidade de prevenção ao crime, não permitindo a instrumentalização do homem em nome do bem comum; finalmente, ao ser conceito contrário à responsabilidade objetiva, exige a presença do dolo ou da culpa para que se possa considerar típico determinado comportamento.
Desta forma, ensina Luis Regis Prado que o princípio da culpabilidade é
postulado basilar de que não há pena sem culpabilidade (nullla poena sine culpa) e de que a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade – proporcionalidade na culpabilidade – é uma lídima expressão de justiça material peculiar ao Estado de Direito democrático delimitadora de toda a responsabilidade penal. A culpabilidade deve ser entendida como fundamento e limite de toda pena (PRADO, 2000, p. 81).
2.8 Princípio da individualização da pena
O princípio da individualização da pena foi uma verdadeira conquista das idéias iluministas, em especial do Marquês de Beccaria, que procurava reformar o sistema penal então vigente, que admitia que a pena se estendesse a pessoas estranhas ao delito. Atualmente, tal princípio é consagrado na maioria das Constituições dos Estados Democráticos contemporâneos.
Em nossa Constituição, encontramos a manifestação do princípio da individualização da pena no art. 5°, incisos XLV, XLVI e XLVII. Dentre estes dispositivos, merece destaque a norma do inciso XLV:
Art. 5° (...):
XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.
Vale notar, também, que, em atenção ao princípio em tela, no ordenamento infra-constitucional estão previstos mecanismos de se atenuar os efeitos nefastos que a pena irradia aos dependentes do condenado, como se pode observar em alguns dispositivos da Lei de Execução Penal.
O processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos: legislativo, judicial e executório (administrativo).
Na primeira etapa (legislativa), temos a previsão do tipo penal e da respectiva sanção, ou sanções, que devem guardar proporcionalidade entre a importância do bem tutelado e a gravidade da ofensa. Também nesta etapa, são prevista as regras que permitirão a individualização judiciária da pena.
A individualização judiciária, por sua vez, é feita discricionariamente pelo juiz, que deve atender às regras previstas no art. 59 do Código Penal. O juiz realiza uma tarefa de ajustamento da resposta penal em função de circunstâncias objetivas, da pessoa do denunciado e também do comportamento da vítima, sempre devendo ter em mente o necessário e o suficiente para a repressão e prevenção do crime.
Por fim, temos a individualização administrativa, que nada mais é do que a execução da individualização realizada pelo judiciário. Nesta fase, indispensável a observância do previsto na Constituição Federal, art. 5°, incisos XLIX (assegura-se aos presos integridade física e moral), XLVIII (referente aos estabelecimentos de cumprimento de pena) e L (relacionado às presidiárias e o direito de amamentarem seus filhos).
Por fim, há que se dizer que na individualização da pena, sob uma perspectiva histórica, encontram-se presentes instâncias objetivas e subjetivas. No aspecto objetivo, temos que a resposta penal deve ser adequada à importância do bem jurídico ofendido e à intensidade desta ofensa, predominando aqui o princípio da proporcionalidade. Por outro lado, no que tange ao aspecto subjetivo, ressalta-se, tanto na individualização judiciária como na administrativa, que a pessoa delinqüente tem fundamental importância na sanção efetivamente aplicada e no modo de sua execução, ressaltando-se, aqui, o princípio da humanidade, a seguir examinado.
2.9 Princípio da humanidade
Por último, mas não com menor importância, temos o princípio da humanidade. É o princípio por excelência que reflete de maneira direta a proteção à dignidade da pessoa humana. Segunda Márcia D. L. de Carvalho,
a dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, é o valor expresso no princípio da humanidade do Direito Penal, que não pode deixar de ser considerado quando da criminalização de qualquer fato, etiquetado como socialmente agressivo, ou quando da cogitação de qualquer sanção criminal (CARVALHO, 1992, p. 45).
Nossa Constituição Federal consagra o princípio da humanidade em diversos dispositivos, como no art. 5º, XLIX (“é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”, XL (“às presidiárias serão asseguradas as condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período da amamentação) e XLVII (não haverá penas (a) de morte, salvo em caso de guerra declarada; (b) de caráter perpétuo; (c) de trabalhos forçados; (d) de banimento; (e) cruéis).
Em nome do princípio da humanidade, diversos países aboliram, no decorrer do século passado, penas excessivamente cruéis, como as de morte, prisão perpétua ou banimento. O maior problema que o princípio da humanidade encontra atualmente diz respeito ao cumprimento da pena privativa de liberdade, tendo em vista as precárias condições de nossos estabelecimentos penitenciários.
3 A INTERVENÇÃO MÍNIMA
3.1 Considerações iniciais
Conforme foi visto, os princípios constitucionais, em um Estado Democrático de Direito como o nosso, têm por finalidade estabelecer os limites que devem ser obedecidos na utilização do Direito Penal, tanto no que diz respeito à elaboração legislativa, como à sua aplicação pelo Poder Judiciário. Os princípios, assim, podem ser considerados verdadeiros instrumentos para a efetivação das garantias individuais e interesses coletivos.
Acrescente-se que, por meio dos princípios constitucionais, procura-se realizar a maior exigência de um Estado Democrático de Direito, qual seja, a proteção e promoção da dignidade da pessoa humana.
Prevista no art. 1°, III, de nossa Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana integra os fundamentos do Estado brasileiro, podendo ser considerada o valor máximo que todas as demais normas e princípios constitucionais devem buscar efetivar. Conforme ensina J. J. Gomes Canotilho,
perante as experiências históricas da aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios. (CANOTILHO, 2002, p. 225)
Desta forma, analisando os princípios constitucionais diante da necessidade de se efetivar a dignidade da pessoa humana, tem-se que esta é a medida fundamental para se legitimar a intervenção penal. Podemos dizer, então, que o Direito Penal, observados os princípios constitucionais estudados, apenas deve incidir na medida em que seja necessário para a efetivação da dignidade da pessoa humana, o que nos leva à chamada intervenção mínima.
Com efeito, a intervenção mínima é o resultado de todos os princípios anteriormente estudados, sendo o valor a ser alcançado pela aplicação daqueles. Constitui o verdadeiro parâmetro que a aplicação do Direito Penal deve obedecer, sob pena de se verem maculadas as conquistas do Estado Democrático de Direito.
Não obstante sua importância, não são poucas as discussões que tal assunto tem gerado no âmbito das Ciências Penais. Isto se deve, em parte, pela errônea acepção que normalmente se tem quando se fala em intervenção mínima do Direito Penal. Em tempos onde a criminalidade transborda em nossa sociedade, parece um contra-senso falar em intervenção mínima, quando se tem cada vez mais defendido um enrijecimento do Direito Penal. A este respeito, há que se falar de duas questões.
Primeiramente, como foi visto, o Direito Penal, como qualquer outro ramo do Direito, deve respeito aos princípios e valores consagrados na Constituição Federal. Uma aplicação do Direito Penal que não leve em consideração tais princípios é uma atitude irresponsável, que estremece as garantias dos cidadãos, sendo tão perigosa quanto o crescimento da própria criminalidade. Desta forma, podemos afirmar que, de acordo com os princípios constitucionais examinados, o Direito Penal apenas se encontra legitimado para a tutela subsidiária de bens jurídicos fundamentais, dentro dos limites da legalidade e da culpabilidade, devendo sua aplicação ser proporcional e humana, na medida de sua necessidade para a proteção da dignidade da pessoa humana. Isto nada mais é do que uma postura de intervenção mínima, que se encontra amparada constitucionalmente, e que não pode ser derrocada por argumentos vazios e oportunistas.
Em segundo lugar, ao lado do amparo constitucional da intervenção mínima, há que se falar também que suas conseqüências são muito mais condizentes com as exigências de um Estado Democrático de Direito do que o sentido oposto, isto é, a maximização do Direito Penal. Isto porque a intervenção mínima pode dotar o Direito Penal de uma eficácia que, comprovadamente, não se consegue com a simples penalização arbitrária, contribuindo, assim, para um fortalecimento do Direito Penal.
Neste capítulo, uma vez que já estudados os princípios que refletem a intervenção mínima, veremos as principais tendências e argumentos que atualmente estão presentes nas discussões em torno da intervenção mínima. Antes, porém, faremos breves considerações a respeito de outras tendências que não a da intervenção mínima, como forma de ressaltar os argumentos que fazem desta a melhor orientação.
3.2 Abolicionismo, Direito Penal mínimo e Direito Penal máximo
A intervenção mínima é uma tendência que se desenvolve no âmbito do chamado Direito Penal Mínimo, e consiste em verdadeiro “meio-termo” entre duas outras tendências, quais sejam, o abolicionismo radical e o Direito Penal máximo.
O abolicionismo radical, que tem como defensores Hulsman, Christie, entre outros, defende a completa extinção do Direito Penal, tendo em vista sua aparente ineficácia no combate à criminalidade, que seria seu principal objetivo. Sugere outras formas de solução de litígios, de natureza civil ou administrativa, até mesmo por vias extra-jurídicas. Pela fragilidade de suas propostas, e perigo de suas conseqüências, não é a tendência mais condizente com os princípios e valores constitucionais, bem como não fornece meios suficientes para se garantir plenamente a dignidade da pessoa humana.
No outro extremo, temos a idéia de um Direito Penal máximo, que pretende estender a esfera de alcance do Direito Penal, por meio do aumento de criminalização e penalização de condutas. Parte do equivocado pressuposto de que enrijecimento penal é a solução ao combate à criminalidade, mas não leva em consideração o atual estado dos estabelecimentos penitenciários, nem influi nas verdadeiras causas de aumento da criminalidade. Ao permitir uma aplicação indiscriminada do Direito Penal, não observa princípios como da exclusiva proteção de bens jurídicos, e ao sugerir penas rígidas para delitos de menor potencialidade lesiva, não respeita o princípio da proporcionalidade, razão pela qual também não se mostra como uma tendência coerente com os anseios de um Estado Democrático de Direito.
Por sua vez, o Direito Penal mínimo, ou abolicionismo moderado, defendidos, entre outros, por Ferrajoli, Hassemer, Zaffaroni, Cervini, consiste em um Direito Penal de “mínima intervenção, com máximas garantias” (GOMES, 2000, p. 51).
Com efeito, o Direito Penal mínimo, ao contrário do abolicionismo radical, não pretende a extinção do Direito Penal, o que poderia levar ao estremecimento das garantias constitucionais, mas sim que se reserve a seu âmbito aquela esfera de situações que, dada sua gravidade, não pode ficar sujeita a outro espécie de controle.
Nas palavras de Luiz Flávio Gomes,
a doutrina do Direito Penal mínimo reconhece uma certa utilidade social ao sistema penal (aceita, por diferentes caminhos, sua legitimação) e parte da consideração de que se o direito penal desaparecesse não acabaria, mesmo assim, a reação contra o delito (pois nenhuma sociedade pode viver sem controle) e seu lugar seria certamente ocupado por outras formas de controle social muito mais inseguras e totalitárias (vingativas) que a atual e provavelmente sem as garantias mínimas (formalização) exigidas pelo atual estágio da nossa civilização e cultura. (GOMES, 2000, p. 51-2)
Com a minimização do Direito Penal proposta pelo abolicionismo moderado, deve haver não apenas uma redução da criminalização de condutas, excluindo-se aquelas que não atentem contra bens jurídicos fundamentais, como também deve haver uma racionalização na aplicação do Direito Penal, com a observâncias dos princípios constitucionais, reduzindo-se a intensidade da resposta estatal. Fala-se ainda, no âmbito do Direito Penal mínimo, de desinstitucionalização, diversificação e descarcerização, posturas estas que serão a seu tempo examinadas.
Dentre as propostas de intervenção mínima, alguns autores têm sugerido certas orientações. Como exemplo de algumas destas propostas, Luis Flávio Gomes, citando Hulsman, aponta casos em que a intervenção penal não pode se justificar:
(a) para garantir o predomínio de uma concepção moral determinada (ex.: crime de adultério, de sedução etc. – estes exemplos e os demais que virão não são do autor, senão uma tentativa nossa de ilustrar a exposição, conectando-a com nossa realidade); (b) para dar tratamento adequado a certas pessoas (ex.: punição de “pessoas” com ideologia diferente); (c) para fazer o público acreditar que se solucionou o problema (ex.: aumento de penas, “endurecimento do sistema”, crimes ecológicos muito abstratamente descritos etc.); (d) quando se sabe que a conduta foge da capacidade operacional do sistema (ex.: consumo de drogas); (e) quando se trata de comportamentos que são típicos dos grupos marginalizados (ex.: vadiagem); (f) quando se trata de crime que as vítimas não noticiam (ex.: aborto, em algumas hipóteses); (g) quando se trata de comportamento demasiado freqüente (ex.: jogos em geral, embriaguez); (h) quando se trata de um desajuste social ou psíquico (ex.: maus tratos contra o filho); (i) quando se trata de um comportamento de difícil previsão (ex.: algumas hipóteses de manipulação genética); (j) quando se trata de um comportamento da esfera privada (ex.: uso exclusivo de entorpecente); ou (l) quando se trata de comportamento que a população admite ou tolera sem que haja graves traumas sociais (ex.: jogos etc.)”. (GOMES, 2000, p.54)
Como se vê, as condutas acima elencadas, em geral, não carecem de tutela penal quer por não atentarem contra bem jurídicos fundamentais (princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos), quer por haver outros meios mais eficientes para a solução do problema (princípio da subsidiariedade), o que corrobora nosso posicionamento, quando afirmamos que a intervenção mínima é a orientação mais condizente com os ditames constitucionais.
Nos próximos tópicos, cuidaremos de algumas discussões envolvendo os desdobramentos da intervenção mínima do Direito Penal.
3.3 Criminalização e descriminalização
Uma conduta passa a ser considerada crime quando o legislador reconhece nela uma lesividade, ou potencial lesividade, a um bem jurídico fundamental, o que motiva uma resposta estatal para sua coibição. Fala-se em criminalização quando se cria um novo tipo penal, aumentando, assim, o número de condutas que são objeto de repressão do Estado via Direito Penal.
A criminalização de condutas, processo que se aproxima do Direito Penal máximo, é característica de movimentos como Lei e Ordem, nos quais o Direito Penal é considerado o principal meio de controle da criminalidade, sendo utilizado, então, como prima ratio, e não como ultima ratio. Daí seu principal inconveniente: ao não levar em conta os parâmetros constitucionais para a criminalização de uma conduta, qual seja, a lesão ou exposição a perigo de um bem jurídico fundamental, na medida da necessidade da intervenção penal, o processo de criminalização incha o Direito Penal, tornando-o ineficaz na realização de suas finalidades.
Por sua vez, descriminalização significa “retirar formalmente ou de fato do âmbito do Direito Penal certas condutas, não graves, que deixam de ser delitivas” (CERVINI, 1995, p. 72) . Entende-se por descriminalização formal aquela que está ligada ao processo legislativo, quando uma conduta deixa de ser tipificada pelo legislador como crime, enquanto descriminalização de fato diz respeito a perda do caráter ilícito da conduta no âmbito da sociedade, por não ser mais considerada lesiva ao bem jurídico que a norma buscou proteger.
Tanto o processo de descriminalização formal, como o de fato, deve levar em conta a gravidade para o bem jurídico tutelado pela norma. Se o legislador reconhece que determinado comportamento não mais lesiona ou expõe a perigo um bem jurídico fundamental, deve tal comportamento ser descriminalizado, retirando-se sua previsão como um tipo penal. Da mesma forma, quando uma conduta não seja mais considerada ilícita pela própria sociedade, em razão da adequação social de certo comportamento, ou seja, por não ser mais a conduta idônea a lesionar ou expor a perigo um bem jurídico fundamental, também ela, respeitados os demais princípios constitucionais, deverá ser também descriminalizada.
3.4 Penalização e despenalização
Segundo Luis Flávio Gomes, “penalizar consiste em adotar alguma reação formal para controlar determinada conduta desviada. A maneira mais comum ainda de penalização consiste na cominação da pena de prisão para quem viola a norma penal” (GOMES, 2000, p. 58). Com efeito, não obstante a previsão em nosso sistema de penas alternativas (art. 5°, XLVI, CF), a maior parte dos delitos continua a ser apenada com a privação da liberdade.
Por sua vez, entende-se por despenalização “o ato de diminuir a pena de um delito sem descriminalizá-lo, quer dizer, sem tirar do fato o caráter de ilícito penal” (CERVINI, 1995, p. 75). Seu o objetivo principal é diminuir a incidência da pena privativa de liberdade, buscando-se
toda a gama de possíveis formas de atenuação e alternativas penais: prisão de fim de semana, prestação de serviços de utilidade pública, multa reparatória, indenização à vítima, semidetenção, sistemas de controle de condutas em liberdade, prisão domiciliar, inabilitação, diminuição do salário e todas as medidas reeducativas dos sistemas penais. (CERVINI, 1995, p. 75)
Da mesma forma, Luiz Flavio Gomes entende que despenalizar significa “adotar processos substitutivos ou alternativos, de natureza penal ou processual, que visam, sem rejeitar o caráter ilícito do fato, dificultar, evitar, substituir ou restringir a aplicação da pena de prisão ou sua execução ou ainda, pelo menos, sua redução” (GOMES, 1997, p.111).
Como se vê, o processo de despenalização visa garantir a mínima intervenção na esfera de liberdade do indivíduo, deixando a pena privativa de liberdade relegada aos casos de extrema necessidade, em que os demais meios de controle não forem eficazes ou suficientes para que haja a proteção efetiva de bens jurídicos relevantes. Ademais, ao se proceder a um processo de despenalização, caminha-se no sentido de resolver uma das maiores falácias de nosso ordenamento jurídico, qual seja, o sistema penitenciário.
Com efeito, conforme afirmado anteriormente, nosso sistema penal prioriza, dentre as medidas punitivas, as penas privativas de liberdade. Nas últimas décadas, na tentativa de solucionar os conflitos sociais existentes, e defender a sociedade, o Estado criou leis com sanções severas e conferiu às penas privativas de liberdade a qualidade de único meio eficaz de combate à crescente violência.
Porém, o que não foi observado é que a violência institucionalizada vivenciada nos últimos anos se deve exatamente, e na mesma proporção, ao endurecimento das novas leis penais. Este processo de intensificação das legislações penais representa um deplorável retrocesso, porque o castigo inexorável do crime voltou a ser a única forma de combate à criminalidade, do mesmo modo que ocorreu durante alguns séculos antes do iluminismo (ROBERTI, 2001, p. 47).
Em verdade, como conseqüência da desmedida utilização das penas privativas de liberdade, criou-se uma insegurança social, não somente devido às constantes rebeliões e fugas dos estabelecimentos carcerários, mas também com relação à devolução do preso à sociedade, já que não se pode acreditar em sua ressocialização. Isto porque, em razão das condições desumanas que vivem os presos, há uma desintegração social e psíquica do indivíduo, e sua conseqüente dessocialização. A tal ponto chegamos que se pode considerar a pena privativa de liberdade, tal como se encontram nossos estabelecimentos penitenciários, em verdadeiro fator criminógeno.
Neste sentido, afirma Maura Roberti que
o sistema penal não só fracassa em grande parte no cumprimento de seu objetivo, como também inflige terríveis violações dos direitos humanos a quem se submete a ele. Dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil ( art. 1º, inciso III, da Carta Magna), é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida; colocando a dignidade da pessoa humana como fundamento da atividade estatal , nossa Constituição afirma ser o homem o centro, sujeito, fundamento e fim de toda a atividade pública. (ROBERTI, 2001, p. 49)
Por fim, resta dizer que crise da administração da justiça penal é resultado da divergência entre o discurso e a realidade do sistema penal, que se traduz pela inflação legislativa; falta de preparo dos serviços policiais, judiciais e penitenciários; ineficácia das penas clássicas; morosidade dos Tribunais em razão de sobrecarga e, por fim o altíssimo custo econômico do delito, em razão dos benefícios alcançados. Daí a necessidade de processos de descriminalização e despenalização.
3.5 Institucionalização e desinstitucionalização
A institucionalização é uma forma de centralizar no Estado as formas de controle da criminalidade, ou, como ensina Luiz Flávio Gomes, “institucionalizar (ou centralizar) significa atribuir a uma instância formal de controle a resolução do conflito” (GOMES, 2000, p. 61).
Já desinstitucionalização significa confiar a resolução dos conflitos à própria sociedade, por acreditar que possa haver uma melhor resolução dos mesmos por meio das vias sociais informais e não centralizadas, ou menos formais e centralizados. No que diz respeito à pena, desinstitucionalizar significa “ter a menor quantidade de presos possível, e a institucionalizar somente em casos extremos (ex.: grandes furtos, homicídios, roubos)” (CERVINI, 1995, p. 69).
A desinstitucionalização é um processo defendido pela corrente abolicionista, e se fundamenta principalmente
na comprovação, produzida por investigações teóricas e empíricas relativas ao custo econômico-social do delito, de que, pelo menos em relação aos delitos que não pertencem ao que se tem denominado “núcleos de delinqüência” (terrorismo, criminalidade organizada etc.), o sistema penal cria mais problemas do que contribui para resolver. (MENDEZ, 1985, p. 385, apud CERVINI, p. 69)
3.6 Carcerização e descarcerização
A carcerização pode ser entendida como um processo que facilita ou aumenta a adoção da prisão antes do trânsito em julgado da sentença, ou seja, da prisão processual ou cautelar. Em razão do princípio da culpabilidade, muitos são os perigos que tal processo pode gerar.
A descarcerização, por sua vez, compreende a utilização de processos que têm por finalidade precípua evitar a decretação ou manutenção da prisão cautelar, devendo ser reduzido este tipo de prisão somente quando imprescindível à garantia do resultado do processo.
Nas palavras de Luiz Flávio Gomes,
do mesmo modo que a descriminalização é a negação da ilicitude do crime e que a despenalização é a negação das penas desproporcionais e desnecessárias (essa, aliás é a natureza da pena de prisão quando não se trata de ofensa grave a bens jurídicos de fundamental relevância), a descarcerização é a negação do cárcere antecipado, isto é, da privação da liberdade como instrumento cautelar.” (GOMES, 2000, p. 52)
3.7 Diversificação
Por fim, um dos últimos processos que se costuma defender no âmbito de um Direito Penal mínimo diz respeito à diversificação, o qual significa remeter a solução de problemas às partes diretamente atingidas, para que resolvam com ou sem o auxílio de organismos externos.
Neste sentido, “a diversificação constitui uma das bandeiras do Abolicionismo, que propõe a extinção do atual sistema penal e a utilização de medidas desinstitucionalizadoras através da solução dos conflitos pelas partes envolvidas, e não mais pela instituição estatal” (BORGES, 2001, p.64).
Como sempre temos ressaltado neste trabalho, deve o processo de diversificação observar os limites constitucionais, ou seja, somente será cabível quando não se estiver em jogo a tutela de um bem jurídico fundamental, pois não se pode retirar do Estado todo o controle referente à matéria penal
CONCLUSÃO
O Direito Penal, por consistir na forma mais brusca de intervenção na esfera pessoal dos indivíduos, possui uma série de limites estabelecidos pelo sistema constitucional. Com efeito, a partir do advento do Estado Moderno, fruto das idéias iluministas, houve uma constante preocupação em limitar os abusos cometidos pelo Estado, ao mesmo tempo em que se passou a se ter a pessoa humana como fundamento da própria organização estatal, levando à busca de um Direito Penal mais garantista e humano.
Atualmente, com o crescimento da criminalidade em nossa sociedade, muito se tem falado a ineficácia do Direito Penal vigente no combate à criminalidade, em razão de sua falta de rigidez. Ao invés de se discutir estruturalmente o problema da criminalidade, vendo quais são suas reais causas, atribui-se ao Direito Penal toda a responsabilidade, acreditando-se, inocentemente, que incumbe a ele resolver tais problemas.
Diante deste quadro, para que não se percam os direitos conquistados pelos cidadãos e garantidos por nossa Constituição Federal, é de grande importância que se esclareça os limites da incidência penal. No âmbito de um Estado Democrático de Direito, como é o Brasil, vimos que tal incidência deve ser mínima, na medida da necessidade para a efetivação da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, ao analisarmos os princípios consagrados em nossa ordem constitucional, quer sejam eles expressos ou decorrentes de seu substrato axiológico, facilmente delineamos um Direito Penal que tem por finalidade precípua a tutela subsidiária de bens jurídicos fundamentais e que, por esta razão, tem seu âmbito de aplicação reduzido àquelas situações onde está em jogo a própria dignidade da pessoa humana, fazendo-se necessário, para seu resguardo, a repressão estatal. Daí decorre a chamada intervenção mínima do Direito Penal, que pode ser também considerada intervenção necessária do Direito Penal.
Vimos também que, como conseqüência da intervenção mínima, temos os processos de descriminalização, despenalização, desinstitucionalização, dentre outros. Não se pretende, com tais processos, conferir maior impunidade aos que cometem condutas delitivas; ao contrário, por meio de tais processos, é possível depurar os comportamentos que realmente merecem tutela penal, contribuindo para o aumento de eficácia do Direito Penal.
Importante ressaltar, ainda, que intervenção mínima não necessariamente é sinônimo de abrandamento de penas: uma vez selecionadas as condutas que realmente necessitam de intervenção penal, é possível que se fale em aumento de pena se, por meio dos princípios da exclusiva ofensa a bens jurídicos, lesividade, culpabilidade e proporcionalidade, e na medida do necessário para resguardar a dignidade da pessoa humana, for verificado que uma conduta carece de uma pena mais rígida do que a atualmente cominada. A intervenção mínima pode, então, fortalecer o Direito Penal, não no sentido que prega o senso comum, de aumento arbitrário de penas, mas sim com fundamento na própria ordem constitucional e com respeito aos direitos e garantias individuais.
Por fim, podemos concluir que o Direito Penal não deve ser tomado como único veículo no combate à criminalidade, mas sim como um meio de que o Estado deve se valer quando haja uma afronta relevante àqueles bens fundamentais à dignidade do indivíduo e ao desenvolvimento social. Neste sentido, a tutela penal encontra seus limites nos princípios consagrados na Constituição Federal, e apenas será legitimada quando necessária para tutelar bens jurídicos fundamentais, resguardando assim a dignidade da pessoa humana.
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